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A vara de negrilho que fez a Península Ibérica navegar

Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. (…) Se a Joana Carda alguém vier a perguntar que ideia fora aquela sua de riscar o chão com um pau, gesto antes de adolescente lunática do que de mulher cabal, se não pensara nas consequências de um acto que parecia não ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que maior perigo comportam, talvez ela responda, Não sei o que me aconteceu, o pau estava no chão, agarrei-o e fiz o risco, Nem lhe passou pela ideia que poderia ser uma varinha de condão, Para varinha de condão pareceu-me grande, e as varinhas de condão sempre eu ouvi dizer que são feitas de ouro e cristal, com um banho de luz e uma estrela na ponta, Sabia que a vara era de negrilho, Eu de árvores conheço pouco, disseram-me depois que negrilho é o mesmo que ulmeiro, sendo ulmeiro o mesmo que olmo, nenhum deles com poderes sobrenaturais, mesmo variando os nomes, mas, para o caso, estou que um pau de fósforo teria causado o mesmo efeito, Por que diz isso, O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir -lhe, mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que tem de ser.

 

Assim começa um grande livro, que, na minha opinião, nos diz muito sobre todos os livros. Não escondo a minha admiração por Saramago, pela sua escrita, pelo manancial e pluralidade de temas apresentados e pela genialidade e originalidade com que  ele os aborda. Sempre me senti atraído por autores e obras que elevam a criatividade humana e A Jangada de Pedra não foge à regra. Poderia fazer quase uma dissertação sobre esta obra, visto que já a estudei intensivamente. No entanto, pensei trazer apenas o início deste livro, uma vez que, devido ao seu valor, é suficiente para que falemos sobre um tema que me diz muito e que penso ter interesse para ser aqui discutido.

Para quem não conhece a história, no momento em que Joana Carda faz, com a vara de negrilho, um risco no chão, toda a Península Ibérica, qual jangada de pedra, se separa do resto da Europa e começa a navegar pelo Oceano Atlântico em direção a África. Perguntam vocês, como eu perguntei na altura que lia o livro, qual a relação que existia entre o risco no chão e a separação geográfica. Aparentemente nenhuma. Só mais tarde, com o desenrolar da história, se percebe por que razão aquela causa provocou aquele efeito. O que é certo é que provocou e, logo ali, percebemos que afinal há riscos e riscos. Há uns que não deixam de o ser, nem almejam a significar mais, mas outros há que têm a capacidade de alterar toda uma realidade. O risco de Joana Carda, por um lado, foi capaz de abrir uma grande brecha no continente europeu, os riscos de Saramago, por outro lado, continuam incessantemente e infinitamente a abrir brechas, construir ligações e criar novas relações, mesmo depois do seu autor já não estar presente.

Como não quero cair em divagação exagerada, sob pena de ser abandonado a meio da leitura por vós, vou direto ao assunto. O que Saramago nos quis dizer com esta obra, com a ação de Joana Carda e de outras personagens ao logo do romance, é que os riscos que fazemos, a escrita que produzimos é incomensuravelmente poderosa. Ao longo da história, os saberes que vão sendo alcançados, são acumulados através da escrita, mas mais que isso, o conhecimento que é produzido, ou até os novos mundos saídos da nossa imaginação e que nos inspiram, nos ensinam e nos fazem querer ser melhores a cada dia que passa são resultados dos riscos e rabiscos que alguns seres extremamente criativos, como Saramago, foram fazendo. E, por isso, ele achou tão importante passar esta mensagem. O que escrevemos é incrivelmente poderoso, talvez não transforme dois países numa jangada, mas poderá ser capaz de mudar a maneira de pensar de alguém, abrir os seus horizontes e fazê-lo ver para lá daquilo que ele julgara ser possível.

É essa a beleza da produção escrita e que, nesta obra, Saramago tão poeticamente representou como um risco de uma vara de negrilho. Penso nesta metáfora de cada vez que escrevo alguma coisa. Não almejando separar nenhum continente, nem alcançar nenhum objetivo em particular, apenas pretendo que, cada texto que escrevo seja um agradecimento, primeiro a quem me deu a capacidade para eu a poder aproveitar e depois a todos os outros produtores de riscos que me permitiram sonhar e descobrir novas realidades através dos seus escritos.

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