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Colunistas

Aos meus amigos

(Mesmo àqueles que se esqueceram que o são)

É preciso ter uma grande lata para escrever publicamente, mesmo que acerca da amizade, utilizando os nomes reais de cada interveniente no texto, sem prévia autorização de cada um deles. Podem não gostar… pode dar problemas.

Sendo assim…vemo-nos em tribunal. Porque não? Talvez seja a única maneira de rever alguns amigos, dos quais aqui vou falar, e que não vejo à anos. É a vidinha, não é?

Amigos, falo com vocês imensas vezes, bem mais do que aquelas que possam imaginar. Mas não vos vejo da mesma maneira que sois agora. Homens e mulheres, adultos com responsabilidades, seja lá o que responsabilidade significa. Não, vejo-vos quase todos de cabelos encaracolados, uns mais do que outros lá isso é verdade, franzinos, alguns pálidos, mas isso tenho que admitir, com os tamanhos e as idades com que vos vejo a maior parte das vezes, tudo parecia pálido, ou se calhar estou a confundir e o que é pálido aqui é apenas a lembrança dos vossos rostos que são mais silhuetas de uma memória que entretanto foi atolada de tantos outros acontecimentos mas que teimosamente nunca vos apagou de registo. E nessa altura, parece que todos tínhamos o cabelo, se não todo, pelo menos a rondar partes da cabeça, encaracolado. Exageros…

Foi assim que vi uma fotografia, que já achava perdida, quando entre arrumações, me saiu num monte de fotografias antigas. Falo de fotografias a sério. Daquelas que demoravam no mínimo oito dias a revelar, já depois de entregar no fotógrafo, o rolo.

E lá estava, o Zé Alberto (Hortas) o Armando (Zerofino) e o Luís (Chavelho). Mais identificados do que isto, nem na farmácia. Nessa altura, identificava-se mais depressa a alcunha do que o próprio nome. No meio desses amigos, eu, o Fernando (Vila-Real). Todos, tão franzidinhos, tão pálidos, tão de cabelos encaracolados, se não todo encaracolado, partes dele. Ou seria dos penteados?

Há dois motivos que me levaram a que me predispusesse ao abuso de falar da amizade, não substituindo o nome dos meus amigos, isto porque a amizade não tem por onde se substitua, e falar de amizade sem amigos é fisicamente impossível. O primeiro motivo foi o ter encontrado a fotografia com os meus amigos, (andávamos na primária nessa altura), e o segundo motivo foi uma mensagem que recebi recentemente do meu amigo Afonso Bravo, em que ele me convidava para o seu aniversário. O Afonso fazia 50 anos de vida e ao mesmo tempo fazia questão que eu estivesse presente na festa. A caminho de sua casa, lembrei-me que apesar de vivermos a uma curta distância um do outro, e apesar da amizade de longa data, entre famílias, eu já não os via à muito tempo. Alguns anos de facto. É a vida.

Por isso, cá estou a falar da amizade, inevitavelmente a falar dos protagonistas dessa amizade.

Começo por aquele que foi o meu melhor amigo durante muitos anos. E isto de dizer o meu melhor amigo não tem com intenção menosprezar ou classificar todos os outros, com maior ou menor grau de amizade. Toda a gente tem um melhor amigo. Desde que me lembro, o meu melhor amigo era o Diogo. O Gomes Diogo. Quantas aventuras, nos melhores anos das nossas vidas. Bem, da minha vida. O Diogo frequentou comigo o primeiro e o segundo ano do ciclo preparatório. Tanto quanto me lembro a amizade foi imediata. Onde estivesse um estava o outro. Que porra. Isso sim, é que eram tempos. A amizade não tinha intermitências, fluía apenas com o decorrer de cada dia, como um sol que nasce todas as manhãs, e quando se retira apenas o faz porque tem que ir descansar, mas volta no dia seguinte.

Um dia comprei um mapa da Europa e organizei um plano de fuga. Apetecia-me fugir, porque nessa altura e com os meus cerca de 16 anos de idade, fugir parecia-me um desafio à aventura, sem limites. Tracei rotas, fiz cruzinhas, assinalei pontos estratégicos e imaginei-me de mochila às costas a vaguear pela Europa, ignorando realidades, dificuldades, consequências, confiando apenas no meu espírito aventureiro de um rapaz na idade da falta de bom senso.

Depois do plano traçado apresentei-o ao meu melhor amigo, o Diogo.

Nessa altura fumávamos umas coisas que nos faziam rir à brava, a maior parte de as vezes mesmo sem a gente saber o porquê. E essas coisas também nos davam uma fome quase insaciável. Não sei bem se teriam sido receitadas por um médico mais de vanguarda, para combater uma possível falta de apetite. Estávamos numa idade crítica e comer era a palavra de ordem. De maneiras que, depois de apresentar o plano ao Diogo, ele levou o seu cachorro especial até meio, deu um trago na coca-cola e após um breve silêncio disse,

“Fugir para quê e para onde? Fugir como e porquê?”

E como eram muitas perguntas, confesso, que eu não esperava, fiquei sem resposta, apenas me deixei estar ali, a vê-lo devorar o resto do seu cachorro especial, empurrado por umas quantas goladas de coca-cola, e a pensar num plano B, que eu não tinha.

Depois temos o Raul Reis. Tal como o Diogo, o Raul frequentou comigo o primeiro e o segundo ano do ciclo preparatório. O Raul era uma espécie de nerd, mas um nerd à semelhança dos nerds do Big Bang Theory, não excêntrico como o Sheldon, mas com o mesmo grau de genialidade, ou seja, o miúdo mais inteligente da turma, com notas altíssimas, e com uma simplicidade que fazia com que toda a gente gostasse dele, enquadrando-se perfeitamente na turma, no meio daqueles que eram mais rebeldes e mais irresponsáveis também. Do que me lembro do Raul, era de uma gargalhada contagiante, de um enorme sentido de humor, e claro, do carola que era para os estudos. Um dia desejei tirar-lhe os fígados pela boca, enfiar-lhe um braço pelas goelas abaixo e virá-lo do avesso, mas isso foi porque falhou um golo que daria a vitória à nossa turma, e não fosse isso motivo mais do que suficiente para que eu ficasse danado com ele, falhou o golo com a baliza aberta. Coisas da vida. O Raul corria bem, tão bem que por muito que me tivesse esforçado para o apanhar, não consegui.

Porque eu me portava muito bem, e tinha a mania que era engraçado, reprovei o segundo ano do ciclo. E reprovei porque tive três faltas a vermelho. Isso é uma outra história registada num outro texto. Não importam aqui os pormenores.

Porque tive que repetir o segundo ano, conheci um outro grande amigo. Colunista do Bom Dia e o grande culpado de eu começar a colaborar com o jornal. Falo do Mário Adão.

O Mário Adão acompanhou muitos anos da minha vida. Aquilo que era primeiro um duo, eu e o Diogo, passou a ser um trio. Eu o Diogo e o Mário Adão.

Tenho que o admitir. O Mário Adão era o que tinha mais juízo de todos nós. Acompanhava-nos em todas as peripécias, mas sabia bem até onde e como pisar o risco sem ultrapassar a marca. Às vezes agia como uma espécie de grilo falante. Nós que éramos uns Pinóquio aventureiros…

Do Mário Adão lembro-me aquela espécie de tique a acariciar a sobrancelha com o polegar e o indicador, como quem ajeita um bigode. Nessas alturas deduzo que estivesse a pensar, a meditar situações e a avaliá-las, nem sempre satisfeito com os resultados, especialmente quando o motivo eramos nós, os seus amigos, metidos em aventuras, que ele por vezes achava desnecessárias. Às vezes tinha razão.

Como o meu plano de fuga, apresentado ao Diogo, havia falhado, tentei a sorte com o Mário Adão. Se com o Diogo as perguntas feitas foram excessivas, a respostas que eu não tinha, com o Mário Adão foi o oposto. Ficou ali em silêncio a observar-me com os olhos por cima dos óculos, fintando as lentes, a acariciar a sobrancelha com os dois dedos e eu a perceber naquele gesto e naquele silêncio, que reprovava as minhas ideias.

Sou um fã dos seus escritos.

E agora apetece-me falar da Conceição Morais. Frequentou comigo o segundo ano do ciclo preparatório, e posteriormente alguns anos do liceu noturno. A Conceição Morais também foi uma boa amiga. Lia às vezes umas coisas que eu escrevia e que tinha a mania de chamar poemas, e, amigos como éramos ela dizia que gostava.

Depois falo da Milita. A Milita sempre foi uma boa amiga. Frequentamos o ciclo, e mais tarde um instituto de inglês ao qual eu era tão bom aluno que só depois de aquilo ter acabado é que eu me apercebi que era suposto estudarmos inglês. A Milita tem uma gargalhada espontânea e feliz e irradia alegria e boa disposição. É o tipo de amiga da qual não é possível, mesmo que por explicações que não sou capaz de encontrar, se quisesse não ser amigo.

À memória vem também o Adriano de Sendim. Mais um amigo de quem tenho enormes saudades. Trabalhamos juntos durante muito tempo e a amizade que se apoderou de nós, apesar de o não ver à muitos anos, faz com que fale com ele, bem como todos os outros, em pensamentos, muito embora, como já o disse, falamos num outro tempo, sendo nós o que éramos nessa época que mais me faz lembrar deles. Cada um na sua época especifica.

Inevitavelmente lembro-me do Carlos Diogo. Lembro-me de algumas boas conversas, à noite, vindos do liceu, sentados numas escadas ao pé da então chamada “Livraria Nova”. Lembro-me bem da satisfação que essas conversas me proporcionavam muito embora não me lembre propriamente dos temas desenvolvidos nessa altura. Mas sei, consigo imaginar quase nitidamente a sensação boa que sentia ao falar com um amigo, ao sentir a amizade a instalar-se entre nós. Por isso, também não o esqueço. O Carlos Diogo foi o primeiro a fazer a técnica do meu primeiro programa na Radio Felgueiras, chamado “Música e Letras”.

Falo também do meu primo José Carlos Pereira. Lembrei-me um dia destes de um episódio em que o José Carlos esteve presente. Esteve em muitos, mas este em particular, foi divertido. Um dia, penso que um sábado de manhã, acordei e quando olhei para o meu lado lá estava o meu primo deitado na minha cama, de papo ao ar, olhos fixos no teto, a arfar, não a dormir, mas penso que com a intenção de me acordar. Fiquei surpreso, até porque na noite anterior o tinha deixado em casa, tardíssimo.

Na noite anterior, um dos amigos já mencionados em cima, resolveu trazer uma garrafa de whisky para celebrarmos o facto desse amigo ter deixado em definitivo o emprego em determinada companhia. Nessa altura tínhamos todos a mania que éramos muito homens, muito fortes. Mas não levou muito a que a garrafa de whisky tomasse conta da nossa força. O que menos se aguentou foi o amigo que tinha trazido a garrafa. De cada vez que lhe deitava a mão parecia que bebia Sumol.

“Sou o gajo mais feliz do mundo”, dizia sempre que entalava os beiços no gargalo da garrafa. Depois abria os braços como se fosse abraçar o mundo e passava a garrafa. Quando demorava a passar, nós tiravamo-la. À terceira foi de vez. Entaladela de beiços no gargalo, braços abertos para açambarcar o mundo, o grito habitual, “sou o gajo mais feliz do mundo” e nisto, deixa-se cair na relva e nunca mais se mexeu. Ao princípio achamos que estava a brincar, mas depressa chegamos à conclusão de que a coisa era mesmo séria. Foi uma carga de trabalhos para o meter dentro do carro. Ele estava completamente passado. Apagado. Chegamos a duvidar se estaria vivo. Apercebemo-nos que sim, quando nas muitas tentativas de o meter dentro do carro lhe batíamos, sem intenções de maldade, com a cabeça contra a chapa do carro, tendo enormes dificuldades de acertar com a porta aberta para o deitar no banco de trás. Gemia, mesmo que ao de leve, de cada vez que levava uma pancada na cabeça. Ou será mais correto dizer que era a cabeça dele que dava pancadas na chapa do carro? Bem, ao fim de algumas tentativas, e umas boas pancadas na cabeça, la atinamos a metê-lo dentro do carro. No caminho de Santa Quitéria até ao hospital, deparavamo-nos com um problema. Ninguém chegava a uma conclusão plausível para dar uma desculpa no hospital. Não queríamos que nos responsabilizassem pelo apagão do nosso amigo.

Assim, chegados às urgências do hospital de Felgueiras lá entramos com o nosso amigo carregando-o aos ombros arrastando-o para uma maca que nos foi trazida imediatamente pelo funcionário da receção do hospital.

Ao cair na maca o nosso amigo grunhiu, “Ó Barbosa, vou morrer”, ao que muito descontraidamente ele respondeu, “Ora, ora, vais nada, estás e bêbado”.

Depois virou-se para nós e quis saber o que se tinha passado. O José Carlos, muito espontaneamente respondeu, “Nós encontrámo-lo deitado numa valeta e trouxemo-lo para o hospital”, mas o senhor Barbosa é que não foi na onda. O que é muito difícil de perceber, mesmo tendo em conta que estávamos todos com fralda de fora, tínhamos dificuldades de expressar as palavras de maneira fluente e percebível, e o meu primo segurava uma garrafa vazia de whisky na mão esquerda. Já para não dizer que, acender um fosforo perto do nosso bafo poderia dar direito a botar fogo pela boca.

De maneiras que, nessa manhã de sábado quando acordei e vi o meu primo deitado ao meu lado, fiquei surpreso e confuso ao mesmo tempo.

“Ainda à pouco tempo te deixei em casa e tu estás aqui…”

Lamentou-se. A tia Ana obrigara-o, como castigo, a levantar o cu da cama, e ele que estava tão exausto como qualquer um de nós, lembrou-se de procurar refúgio, descanso melhor dizendo, na minha cama.

A lista é extensiva e o texto vai longo, por isso mesmo antes de finalizar lembro o Zé de S. Tomé quando disse,

“Pendurava-me no galho de uma árvore e voava até aterrar em cima do Prufete… (Bufete)”

E o Raul Reis a explodir numa gargalhada.

Lembro o Ferraz, a Hermínia, a Elizabete, a Sílvia, o Ferreiro, vejam bem, o Ferreiro, e o nome dele era Ferreira, mas como era filho de Ferreiro…e nós éramos danados para a brincadeira…

Muito bem, amigos, tenho que confessar, nessa altura pensei bem que viveríamos para sempre, que não crescíamos, ou pelo menos que não haveria pressa nenhuma em crescer. Agora que sei que não é assim, que sei que não viveremos para sempre, no mundo que agora palmilhamos, arrisco sem medo, ou receios, a falar no valor da amizade, que para mim é imenso, utilizando os vossos nomes reais, porque, já o disse, seria impossível para mim falar de amizade sem falar, pouco que seja, dos seus protagonistas.

E agora, se me quiserem levar a tribunal por utilizar os vossos nomes sem autorização…vamos lá. O que tenho de mais valioso, ninguém me pode tirar, a não ser que me tire a vida, porque há princípios, qualidades, defeitos e virtudes que estão dentro de mim. Uma delas, é o valor que dou à amizade.

Ah, já agora… independentemente do que o juiz decretar, que tal irmos todos jantar juntos…?

 

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