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Carta póstuma a José Saramago

© DR

Foi de sua vontade que parte das suas cinzas fossem postas debaixo de uma pedra em Lanzarote,

e era de sua vontade também, que de vez em quando lá fossem pôr uma florzita,

“para que eu saiba que não fui esquecido”

 

Sr. José,

O meu saudoso pai costumava dizer que “nunca se morre quando se vive no coração das pessoas”.

Dizia isto sempre que queria consolar uma alma triste que havia perdido outra alma que partiu. E, pequeno, tenro de idade, eu apercebia-me que usava essa citação porque em certas alturas da vida de uma pessoa, em situações de impotência perante coisas inevitáveis e que não temos o poder de controlar, não sabemos muito bem o que dizer.

Mas, pessoalmente eu sempre achei que o problema não é não saber o que dizer, mas sim porque o vocabulário não tem ainda as palavras suficientes que possam expressar os sentimentos, de maneira a que as possamos usar para descodificar o que não conseguimos dizer, e que nos vem do pensamento.

De qualquer maneira esta citação não era originalmente do meu pai. Alguém o tinha dito e ele achou-a tão explicita em relação ao sentimento de perda, de alguém que se ama ou se respeita, ou as duas coisas juntas, que passou a usá-la, citando sempre a pessoa que o disse da primeira vez, e que eu não me lembro o nome.

Mas tal como o meu pai, usei a frase algumas vezes, e uma delas foi para que fosse gravada na lápide da campa do meu amigo Ademar, em nome de todos os seus amigos. E já lá vão mais de trinta anos em que, no pico da sua juventude, o Ademar partiu para o outro lado. Foi tão abrupta e cruel a partida que durante anos repeti vezes sem conta a mesma pergunta no meu pensamento. “Onde estás tu agora!?” Repeti essa mesma pergunta quando o meu amigo Martins, abrupta e inesperadamente também ele partiu sem sequer ter a oportunidade de dizer adeus. Repeti a pergunta quando o meu saudoso pai se foi embora para o outro lado.

Mas nesse caso, sou obrigado a admitir que a sua partida estava a ser preparada desde o dia em que lhe diagnosticaram o cancro no estômago. Quero dizer, de facto, pensando bem, a partida já estava a ser preparada muito antes do conhecimento do diagnóstico. Nós é que só soubemos a partir dessa altura.

E por estranho que pareça, sr. José, não posso deixar de expressar um sorriso, que de certa maneira me aquece um pouco o coração, ao lembrar uma pequena historia que o meu pai contava. Se o sr. José tiver paciência digo-a em poucas palavras. “Um homem morreu e quando chegou ao céu foi ter com Deus, e um pouco aborrecido disse-lhe. -Assim, meu Deus? Tiras-me a vida assim, sem me avisares? – Deus respondeu-lhe… – Sem te avisar? É culpa minha que não estivesses atento aos sinais que te enviei? Não te dei primeiro uma dor numa perna? Palpitações no coração! Falta de ar! Cansaço que preferiste acreditar ser inexplicável. Quantos sinais mais, querias tu!?”

Hoje, ao recordar estas pequenas histórias que o meu pai tão sabiamente nos contava, sinto uma espécie de calor interior que me aquece esta alma sempre tão inconformada, e expresso isso com um sorriso. Finalmente consigo fazer isso, porque nos primeiros anos da sua partida, esperada, mas não desejada, tudo o que conseguia era um aperto no peito, um nó na garganta, e os olhos enchiam-se-me de lágrimas que apressadamente corria a esmagar com a palma das mãos, às vezes de punho fechado para que, vindo elas nos momentos mais inesperados, não me desmascarassem os sentimentos a qualquer altura do dia, em qualquer lugar. E nesse momento, enquanto me tentava ver livre do embaraço, a mesma pergunta assolava o meu pensamento. “Onde estás tu agora!”

De certa maneira o sr. José lembra-me o meu pai. Não estou a comparar talentos. Falo de um mesmo cabelo branco, de uma testa alta, que segundo ele, era sinónimo de inteligência. Uma mesma magia em contar histórias. Ele, com aquele natural talento de encaixar pequenas histórias nos momentos certos, de maneira a que deixassem uma mensagem nas entrelinhas. O sr. José com este natural dom de enganchar as palavras umas nas outras, como cerejas que se tiram de mão cheia de um cesto cheio delas.

Tal como o avô do senhor José, que foi de árvore em árvore abraçando o tronco de cada uma delas, regando-as uma última vez com as lágrimas de quem sabe que está, mas vai deixar de estar, também a última imagem que tenho do meu pai é uma memoria viva de um cenário bastante semelhante. Por isso, quando o ouvi contar essa historia na entrevista da Judite de Sousa, comovi-me ao ponto de não conter umas lágrimas que me encharcaram os olhos tornando o ecrã numa espécie de crepúsculo, e a partir desse momento fechei-os, pus a entrevista em pause, recostei-me na cadeira e fui ao baú das memorias para recordar esse momento.

Ele tinha vindo do hospital, e nesse mesmo dia, quando chegou a casa, ainda em pijama e roupão, com a vagareza de quem leva aos ombros a doença que o levará para o outro lado, desceu as escadas que dão acesso ao quintal, e num gesto que me comoveu profundamente, com as suas dificuldades de quem já deixou pelo caminho da vida a última réstia de saúde que fez dele o homem que foi, baixou-se em cada planta, em cada vegetal que ele mesmo cuidou durante tanto tempo, e acariciou-os com ternura. Não lhe vi mexer os lábios, mas sei que falou com todos eles. Que lhes disse adeus. E na distância que me separava dele, meio escondido para que me não visse, ali fiquei a olhá-lo pela janela da cozinha, lá do alto, a mexer os meus lábios, a pedir-lhe desculpa, perdão mesmo, por sempre saber que além de um bom pai e bom marido, um avô muito querido, era também um grande homem e eu nem sempre soube ser um grande filho. Que tinha a simplicidade e a sensibilidade que têm os grandes homens. E, poucos dias depois regressei a Inglaterra com essa memoria que gravei a ferro e fogo dentro da minha mente, sabendo que seria a última imagem que teria dele. Quando voltei foi para o ver estendido no caixão com a mesma dignidade que sempre teve em vida.

Resta-me lembrar isso ao longo da minha vida, e tal como o sr. José disse, e isso de certa maneira serviu-me de consolo, lembrar esses momentos, esses gestos de enorme grandeza e sensibilidade humana, e acima de tudo, querer lembrá-los.

Quando através dos meios de comunicação tive conhecimento da partida do sr. José, durante alguns dias fiquei com uma sensação de vazio dentro de mim. Fiquei com a impressão de que tinha perdido alguém que de certa maneira se encontrava comigo, em muitas ocasiões da minha vida, para me contar histórias, tão mágicas e tão sitibundas que por momentos, momentos que em muitos casos duravam horas, me fazia esquecer de um mundo que tanto me afligia, para mergulhar num outro mundo onde a história, a cada pagina desfolhada me absorvia profundamente.

Ninguém como o sr. José sabia usar as palavras disponíveis no vocabulário, e que não chegam a ser suficientes para expressar todos os sentimentos, tão bem como o senhor o fazia. Melodias escritas em palavras. Uma outra maneira de tocar piano.

Mas, não perguntava a mim mesmo, “onde estás tu agora!” Isto porque o sr. José fez o favor de nos deixar o seu talento como herança há disposição em cada livro, em cada melodia de palavras.

Também não perguntava, “onde estás tu agora” porque sempre achei que o senhor José se foi encontrar com Baltasar Sete-Sois, Blimunda Sete Luas, e o padre Bartolomeu de Gusmão, e juntos têm muitas conversas e exploram outros mundos, numa passarola cheia de vontades num céu carregado de nuvens abertas.

E que se dane aquela Maria brasileira, de Iguatemi, que depois de desfolhar um rol de moralidades, tinha como desejo assistir de camarote ao churrasco da sua pessoa. A carta que a pobre Maria de Iguatemi lhe enviou, além de ter sido uma monstruosa infelicidade de quem não sabendo usar a caneta, com ela pode provocar o maior acidente da sua vida, a si mesma, em certas partes da sua extensa e ridícula ladainha, provocou-me um embaraço que só foi possível suportar, pela natural curiosidade de quem quer saber quão longe a estupidez consegue chegar. E de facto, neste caso, mais longe não poderia ter ido.

Mas, o que mais me agradou, e que assim sem eu contar, depois de tanta merda de uma só vez, me arrancou uma gargalhada, daquelas que dão tanta satisfação, que, com todo o respeito, só se podem comparar a um orgasmo, foi a resposta curta, inteligente, precisa, que o senhor deu depois de transcrever toda a pilha de merda que a carta continha.

Só um homem com a sua inteligência, com a sua magia em utilizar as palavras, de as encaixar de maneira subtil e única, tinha a capacidade de em poucas frases expressar um problema de mais de dois mil anos, e que tem afetado muitas Marias e Maneis, não só de Iguatemi como em qualquer outra parte do mundo.

O sr. José foi apreciado, nos quatro cantos do mundo, ou seja, lá quantos cantos o mundo tem, como escritor de talento soberbo, mas também como homem integro, de grande caracter, de grande humanismo. Mas porque há sempre o reverso da medalha, também teve os que lhe quiseram mal, os que o odiaram. Mas até esses o sr. José compreendeu e não lhes guardou rancor, até porque os representou muitas vezes nos seus livros e deu-lhes voz, na esperança de acordar as pessoas para que façam do mundo um lugar melhor para se viver. O sr. José compreendeu as pessoas que foram criadas, os seus defeitos, os seus vícios, as suas incongruências, e até as suas maldades, mas nunca entendeu o criador e as suas intenções.

E quem, no seu juízo perfeito, o pode criticar por isso! Afinal, já nem se trata só do direto a ter liberdade de expressão, mas também, de ter o direito de duvidar, de analisar, de estudar, de comparar, de buscar o conhecimento, e de tirar conclusões.

O sr. José questionou a existência do Deus da bíblia. Criticou-o e apontou-lhe as inconsistências, as barbaridades que quando se não conseguem explicar de maneira satisfatória e convincente, se diz que foram interpretados fora do contexto. E disse, que Deus está na cabeça do homem. Que quando o último homem acabar na terra, a ideia de Deus morre com ele. É no cérebro humano que está tudo. O bem, o mal, Deus e o diabo.

E eu concordo plenamente. Por isso é que sempre achei que o sr. José nunca foi um ateu como muitas pessoas o afirmaram. Sim, eu sei que negou a existência de um Deus fabricado pela mão do homem. Ninguém mais do que o Sr. José trouxe Deus dentro de si tão vivo como o senhor o fez. Com a sua grandeza, com a sua humildade, com o seu grande humanismo, com a sua lucidez. Esse Deus que cada ser humano transporta dentro de si e que parece fazer por ignorar, porque, para bem de interesses que acabam por lhe serem alheios e os não servir de maneira alguma, a não ser mantê-los escravizados à sua própria ignorância, preferem seguir um Deus que promete, tal como diz um outro grande talento, o António Lobo Antunes, banquetes de bem-aventuranças. “Comecei a duvidar da historia do camelo e da agulha e dos tesos humildes e obedientes a quem se prometiam banquetes de bem-aventuranças.”

O sr. José disse que vivemos num mundo completamente esquizofrénico. Um mundo que vive realidades tão opostas. Deveríamos andar no mundo para dizer aos outros quem realmente somos e não o que temos para que se possam aproveitar de nós. Talvez as pessoas precisem de encontrar o Deus que lhes vive na cabeça. Talvez que se o encontrarem, o mundo possa continuar a ser um lugar de esperança.

Foi de sua vontade que parte das suas cinzas fossem postas debaixo de uma pedra em Lanzarote, e era de sua vontade também, que de vez em quando lá fossem pôr uma florzita, “para que eu saiba que não fui esquecido.”

E eu repito na minha cabeça… “para que eu saiba que não fui esquecido.” Antes de partir definitivamente, o sr. José esteve perto do outro lado e voltou, porque a sua amada esposa, Pilar, o não deixou partir. E eu volto a repetir na minha cabeça… “para que eu saiba que não fui esquecido.”

Já o escrevi num outro texto que o jornal digital de língua portuguesa, no Luxemburgo, Bom dia, teve a amabilidade de publicar. “Se dentro do meu corpo está o meu ser, porque parece tão difícil de acreditar que quando uma pessoa morre, é o corpo inerte e sem vida que fica para trás, enquanto o verdadeiro ser que habitou esse corpo, se liberta e parte numa outra missão…!”

Sr. José, na impossibilidade de me poder deslocar a Lanzarote para lhe colocar lá a tal florzita, para que o senhor saiba que não foi esquecido, aqui lhe deixo a minha sincera homenagem como símbolo da minha gratidão pelos momentos que me proporcionou, e continua a proporcionar com a magia das suas palavras e do significado que nelas incute. Quando, em muitos momentos da minha vida, a vida me foi tão difícil de manejar, os seus livros levaram-me para um outro lugar onde as atrocidades do mundo não me chegavam, mesmo que eu estivesse a ler sobre elas.

Ando a escrever um livro que já vai com quase duzentas páginas. Penso que quando alguém escreve um livro tem sempre a secreta esperança de que venha a ser publicado, mesmo que não passe disso mesmo. Esperança. Pelo sim pelo não, a personagem principal do meu livro chama-se Balthasar. E isso, é a minha maneira de o homenagear a si. Pena que não tenha um bocadinho que seja, das suas capacidades. A diferença, eu acho, é que o sr. José era um escritor de talento único, e eu sou apenas aquele tipo que gosta de escrever. Uma vez mais, tal como diz o grande António Lobo Antunes, “descobri que há uma grande diferença entre escrever bem e escrever mal…”

Para terminar, gostaria de lhe dizer que além de muitas outras coisas boas que fez, e que eu transporto

dentro do meu coração, sempre o lembrarei como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas.

Muito obrigado.

António Magalhães

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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