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“Uma escuridão bonita” de Ondjaki

Ficha técnica

Título – Uma escuridão bonita

Autor – Ondjaki

Editora – Editorial Caminho

Páginas – 112

Opinião

Olhei a capa e reparei em dois pares de pés virados um para o outro. Folheei as páginas e encantei-me com o negro das mesmas em contraste com um punhado de palavras e ilustrações que as iluminavam. E soube de imediato, com aquela certeza tão certeira que de vez em quando me inunda, que teria que mergulhar nesta escuridão bonita debaixo dos cobertores, com apenas um ponto de luz e rodeada de negrura e silêncio. Porque sabia que ia ser deliciosamente arrepiante dividir a escuridão com esta pequena estória, “em concha e aconchego, como se dois mundos, nessas gotas de negrume, fossem um só.” (pág. 25)

E assim foi. Em menos de uma hora embalei-me com a magia, a poesia e a doçura de palavras e imagens. Bebi o encantamento que transpira de uma estória recheada de inocência, de ansiedade, de desejos, de tremuras e de uma previsibilidade que em nada “amarga” o sabor inesquecível e perene que nos marca o travo durante e após termos chegado ao seu fim. Tive que combater constantes tentações de sublinhar passagem atrás de passagem, porque trouxe Uma escuridão bonita da última visita à biblioteca municipal da terrinha. Fui remediando essa tentação dizendo para mim mesma que semelhante preciosidade é motivo mais do que suficiente para um próximo gasto monetário numa livraria qualquer.

De uma realidade que é a realidade de todos os dias de uma Luanda parca de rendimentos, chega-nos uma noite banal, quotidiana, onde mais uma vez a luz foi abaixo. Os olhos adaptam-se a uma escuridão forçada e penetram numa beleza mais palpável, mais audível, mais cheirada. Disfarçam-se defeitos, medos, anseios, vontades e permite-se que os sonhos ganhem asas e até se cumpram. Como o sonho de partilhar um beijo com alguém de quem apenas vislumbramos sombras e brilhos.

Não sei mais que diga. Talvez não seja preciso dizer mais nada. Apenas partilhar algumas das muitas passagens que me arrebataram e me fazem querer ler tudo aquilo a que possa deitar a mão de um autor que terá que habitar com lugar de destaque na minha estante:

Afinal uma pessoa também pode dizer coisas sem ser com voz de falar. Foi a primeira descoberta assim estranha que eu fiz nessa noite duma bendita, bonita, falta de luz.” (pág. 16)

O silêncio é uma esteira onde nos podemos deitar.” (pág. 18)

A mão dela estava perto da minha. Senti uma comichão de ausência na proximidade daquele calor, sabia que os dedos dela estavam ali, e continuava a falar para não saber, no coração, que todo o meu corpo pedia uma carícia calada.” (pág. 18)

Um dia perguntaram à minha avó Dezanove o que era poesia. Primeiro ela ficou muito tempo calada, então pensaram que ela não tinha resposta. Mas ela depois falou: a poesia não é a chuva, é o barulho da chuva.” (pág. 62)

Depois das mãos e dos lábios, os nossos corações acelerados eram um único chuvisco de contenteza. Até acreditei que dentro de nós havia um cheiro de terra depois de chover.” (pág. 103)

Completamente deslumbrada e ainda em estado de encantamento, peço-vos que leiam e descubram Ondjaki. É um pecado dos mais escabrosos se não o fizerem!

NOTA – 10/10

Sinopse

“O palco sagrado das conversas eram dois: na varanda ou no quintal. Testemunhas: os mosquitos e os morcegos. Banda sonora: alguma televisão com som alto a dar bonecos ou telenovela.
Se não houvesse luz? Brincadeira gritada de Cinema Bu, todos contra todos, nas vozes de descrever os filmes que ainda nem tínhamos visto.”

Uma Escuridão Bonita é, talvez, a simples estória de um beijo.

in O sabor dos meus livros

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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