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Crónicas de Lisboa: pai, porque me traíste?

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O professor pediu aos seus alunos da turma que escrevessem uma espécie de carta aos respetivos pais e escolhessem um título. Ele teve o cuidado de lembrar que não estava próximo o Dia do Pai, celebrado a 19 de março, mas sim a proximidade do Natal e do tempo do “Pai Natal”. Um dos alunos, optou logo por escolher o título, porque sentia na sua alma um aperto que, muitas vezes, o deixava debaixo duma profunda tristeza. Assim, foi escrevendo ele:

“Pai, o meu professor da disciplina de português pediu à nossa turma que, cada um de nós, escrevesse uma espécie de carta dirigida ao nosso pai. Confesso-te que fiquei apreensivo sobre este pedido, porque transporto dentro de mim uma dor que me aperta a alma, pela perda de “metade de ti”, ou talvez seja mais do que uma metade. O nosso professor deu-nos um prazo duma semana para concluirmos a nossa carta, mas todos os dias vai-nos perguntando como vai o texto da carta pedida, também porque, através da qual, ele pretende ver a nossa qualidade na escrita na língua mãe, o português. Sendo, também pedagogo, tentar, através das palavras que vamos acrescentando, nos conhecer melhor, porque é ele o diretor de turma neste sexto ano de escolaridade. Cada dia, tento escrever a minha carta, mas, do meu coração e da minha alma, não saem palavras de jeito, são palavras confusas e outras que eu nem deveria pensar acerca de ti, meu pai, um pouco mais do que um pai biológico, acabando por riscar o que rascunhei. Faço um esforço para escrever coisas bonitas, como, sei, estão os meus colegas de turma a escrever. Mas não sei o que escrever ou, melhor, transmitir para o papel o que me vai na alma. Sei que tive muitos sonhos, ainda no ventre da minha mãe, mas já ali, por vezes, sentia a falta das tuas carícias, no tato ou nas palavras doces que gostaria de ouvir, que fossem melodiosas, a única linguagem que eu entenderia, ainda no ventre. Nunca afagaste o ventre onde eu estava a ser gerado e crescia, até ao momento que teria de abandonar aquele local onde apenas me faltava o teu sentir pelo filho que iria nascer. Depois, ao chegar a este mundo, esperava de ti mais carinho, mas tu tinhas pouco jeito para partilhares comigo os afetos do amor de que tanto carecia ou interessavas-te mais por outras coisas. Tinha quase só os da minha mãe e que me alimentava dos seus seios e de mim cuidava com carinho e muito amor. Deste o primeiro passo para eu ser gente, ou teria sido acidental? Mas, após a minha chegada ao mundo, eu esperava que assumisses o papel pleno de pai, dando-me amor, um amor de pai. Umbilicalmente, estava ligado à minha mãe, tal como fisiologicamente dependia mais dela, mas de ti a ligação passaria a ser feita pelo amor que me desses e pela alegria que sentisses por seres meu pai. Fui crescendo e as minhas “carências de pai” não eram satisfeitas. Pouco ou nada brincavas comigo, não me contavas histórias, não jogavas à bola comigo, etc. Sentia-te distante de mim e também da minha mãe e eu não gostava das tuas reações para com ela, quando ela te pedia para me ajudares a crescer.

Na aula, fui ouvindo as histórias que os meus colegas escreviam para mostrarem ao nosso professor e ficava cheio de inveja, que se manifestava na tristeza que sentia, por tu seres muito diferente dos pais deles. E, em silêncio, dizia para comigo mesmo: por que razão o meu pai não é como os pais dos meus colegas? Recebia de ti o “hercúleo” esforço de ligares a televisão onde passavam os desenhos animados e, em vez de brincares comigo, domavas assim a minha sede de brincar contigo. Se me aproximava de ti pedindo-te que brincasses comigo, tu, sentado no sofá, dizias-me que estavas cansado do trabalho. Ultimamente, deixaste que o telemóvel te substituísse nas partilhas que me devias já há muitos anos e, em qualquer lugar, mesmo à mesa das refeições, passavas-me o telemóvel para que eu me “embebedasse” e, assim, queimar o tempo que poderias e deverias brincar comigo e dares-me atenção e transmitires-me ensinamentos. Antes disso e frequentemente, encharcavas-me com brinquedos, com os quais não brincavas comigo. Oferecias-me bolas de futebol, mas nunca elas tiveram uso, porque levares-me a um parque, era demasiado cansativo para ti. E como se não bastasse, agora, “partiste-me ao meio”, porque enveredaste pela guarda partilhada. Assim, ando de casa em casa, uma semana na tua e outra na casa da minha mãe, essa que esteve sempre disponível para mim, mas, mesmo sendo uma supermãe, achou que deveria pôr termo à vossa união conjugal. Como eu a entendo, pai!

Pai, sinto-me traído por ti, porque não me deste aquilo que eu mais desejava: o amor e a partilha dum verdadeiro Pai. Será que vais sentir a falta da outra metade de mim? Nunca é tarde, pai, e se queres viver, ainda, o amor entre um filho e um pai, medita nesta minha carta que, acredita, me custou muito a escrever. Rasguei várias vezes a folha e as lágrimas caiam-me rosto abaixo e borravam a tinta da escrita. Aceita, a oferta e o pedido de coração desta criança que quer continuar a ser teu filho, mas te pede muito mais daquilo que tens sido como pai. Serás capaz e com vontade para mudares? Eu preciso de ti e tu também precisas de mim. Olha, neste período natalício, não me ofereça mais uma fútil penda de Natal, este cada vez mais vazio de amor, aquilo que me tem faltado, um amor de pai. Esse, sim, podes oferecer-me e sem limites, porque para o amor não há limites. Tenta ler, nesta minha carta, o meu grito de revolta, carta esta que vou mostrar ao meu professor e que, como ele disse, iria entregar a cada destinatário escolhido por cada aluno, no final deste período escolar. Assim receberás a minha carta.”

Esta a carta que muitas crianças “órfãs de pais vivos” quereriam escrever aos seus pais, principalmente nesta época natalícia, cujos valores que lhe deram origem, o nascimento do Menino Jesus, depois corporizado em Jesus Cristo, perderam a força religiosa dos cristãos. Onde antes havia o presépio como símbolo desse tempo ocorrido há mais de dois séculos em Belém, nas proximidades de Jerusalém, hoje as figuras predominantes são a Arvore de Natal e o Pai Natal que “viaja” desde a Lapónia, para descer as chaminés e entregar as prendas às crianças, nos poucos lares onde elas ainda habitam. Força do marketing que faz crescer o número das pessoas sem religião, ou, melhor dizendo, “capturados para a religião do consumismo”, e aderindo a representações “teatrais familiares natalícias” que de genuíno têm cada vez menos. Aliás, esta época natalícia está carregada de stress, familiar e não só, e de muita hipocrisia. Felizmente, para muita gente, o “sacrifício” é de dois ou três dias. Depois, só lá para daí a onze meses começará a encenação natalícia.

Serafim Marques 

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