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Europa querida ou uma história de comboios

A certa altura apercebi-me de que havia uma «coisa» chamada Europa e que Portugal era uma pequena mancha na ponta de um papel que o meu avô chamava «mapa». Um pedacinho quase a cair ao mar. O tal mapa era uma espécie de quebra-cabeças com peças coloridas coladas umas às outras. Um dia, depois do jantar, o meu avô foi buscar um livro dos seus tempos de escola. Fiquei boquiaberta quando vi que a tal Europa era outra quando o meu avô era novo. Alguns países até tinham outro  nome! «O teu livro está errado, avô! É o meu que está certo. Ele riu-se.

Certo é que o meu sonho de viajar, a minha ânsia de te conhecer, de te entender, Europa querida, tem raízes nesses mapas esquisitos e no meu avô, nascido num outro quadrado daquele mapa, de onde ele tinha trazido a mayonnaise, os beignets de pomme, o kramiek, o queijo com mostarda, os pannenkoeken. Quanto ao resto, a culpa é dos livros, da música e da pintura. E dos relatos dos amigos mais velhos que se aventuravam pela Europa fora, com uma mochila às costas, um interrail, e o Guide du Routard ou o Lonely Planet no bolso. E do Almada Negreiros que dizia que ainda não tinha feito viagens e que a sua cabeça não se lembrava senão de viagens. Eu queria ir, ir, ir! Ir para além dos Pirinéus, porque, nesse tempo, era além dos Pirinéus que a vida começava, que tu começavas, Europa querida.

Nos meus périplos interrailistas dos anos 80, fui a Saint-Jean de Luz à procura de Reine, a sombria heroína de um livro que lera aos dez anos; a Paris, à procura de Paris, da escadaria do Sacré-Coeur, dos alfarrabistas do Sena, dos pintores impressionistas, de Daniel Cohn-Bendit e de todos os escritores e poetas enterrados no Père-Lachaise; a Amesterdão, à procura de Van Gogh e de Anne Frank; a Viena, à procura do azul do Danúbio, de Lou-Andreas Salomé e dos pintores expressionistas; a Bruges à procura da minha bisavó Jeanne; a Lausanne à procura de Jaques, o revoltado sonhador por quem me apaixonara ao longo das novecentas páginas dos Thibault; a Veneza, para me perder nas suas cales com o enigmático aventureiro Corto Maltese por companhia, outra paixão da qual ainda não me curei; à Alemanha, onde vivia o meu namorado de carne e osso; a Bruxelas, porque lá morava um querido amigo de infância que dava de comer, beber e fumar a todos costacapariquenses que lhe batiam à porta, esfomeados e sem um tostão; ao Luxemburgo porque era perto de Bruxelas, sem suspeitar de que viria a passar aqui mais de metade da minha vida. E mais ainda.

Todas essas viagens começavam na estação de Santa Apolónia, apinhada de gente que tomava de assalto o Sud Express, o mítico comboio que ligava Lisboa a Paris-Austerlitz. No Sud começava a aventura dos jovens interrailistas, uns que iam só de passeio, outros a caminho das vindimas em França ou das campanhas do lúpulo e da maçã em Inglaterra. Para as famílias inteiras, cheias de filhos, sacos e malas que rumavam a França, à Alemanha ou à Suíça, era o fim das férias e o regresso aos teus céus cinzentos, Europa querida.

Depois de uma voltas em Paris, eu seguia viagem. Sem roteiros gravados na pedra, estudava os horários dos comboios sobretudo os dos comboios noturnos. Que comboios partiam por volta das onze da noite para chegar não importa aonde pelas sete da manhã? É que uma noite num comboio noturno significava poupar uma dormida num albergue de juventude – caríssimos para a minha magra bolsa de então. Essa poupança significava duas refeições decentes, para variar das latas de atum e dos cubos de marmelada com que tinha enchido a mochila em Lisboa. Dormia mal em comboios a abarrotar – interrailista não tem lugar marcado – mas, por vezes, o cansaço era tal que adormecia em pé, no corredor, encostada às janelas.

Regressava feliz, com os olhos e o coração cheio de tanta novidade, tanta cor, tantos comboios ronronantes! Saía-se em Hendaye, passava-se para Irun a pé, porque o material circulante francês não entrava em Espanha graças à malfadada bitola ibérica. Quando o comboio arrancava, havia  quase sempre alguém que, cheio de saudades de casa, abria a janela, aspirava o vento e gritava a plenos pulmões: «Estamos em casa! Já cheira a Península!! Já cheira a merda! E ríamo-nos perdidamente.

Sabes, Europa querida? Aquilo que me deste e trago comigo não são os livros que li, os museus que visitei ou as ruas que palmilhei. São as pessoas com quem me cruzei nessas viagens de comboio. Tanta história por escrever. O acordeonista de rua que me pagou uma sanduíche. O amante chileno. O cobrador do suplemento de velocidade em Espanha, subornado com um copo de vinho. O australiano que quis escovar-me o cabelo, porque eu lhe lembrava a mulher fulminada por um cancro. As famílias generosas, sempre dispostas a partilhar um naco de broa e umas rodelas de chouriço. A holandesa que enfiou as mãos no meu decote. O gigante africano encolhido naquele compartimento vazio num comboio à pinha, porque todos, menos eu, tiveram medo dele.

Gostava que houvesse mais comboios noturnos. Sei que há coisas bonitas a acontecer e que foram lançadas muitas novas rotas noturnas em todo o continente. Pode-se agora viajar pela noite de Viena a Paris ou de Bruxelas a Berlim via Amesterdão. Há planos para alargar os serviços existentes, porque a procura existe. Não os afogues em burocracias, Europa querida! Mas, uma vez mais, a Night Train Network parece querer ficar-se às portas da Península. Sabes que sou uma romântica incorrigível, Europa querida. «Soyons réalistes, demandons l’impossible”. Quero que ressuscites o Sud Express. Quero um último Paris-Lisboa no Sud, antes de morrer.

Eduarda Macedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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