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Europa querida ou uma história de ver navios

Abro a porta de casa e zás, lá estás tu, Europa querida. Lá está a fotografia que comprei em junho de 2019 a Aurélien Ernst, um dos artistas a expor num daqueles eventos fora da caixa que por vezes se realizam no Grão-Ducado, e de cuja existência ninguém suspeitaria sem a informação passada por um insider. O evento combinava arte com degustação de cervejas artesanais e propostas culinárias inovadoras nos jardins do icónico castelo de Ansembourg.

As únicas fotografias da mostra estavam expostas num canto de um vetusto edifício agrícola. A luz, pouca, penetrava pelas frinchas das madeiras que fechavam toscamente um punhado de aberturas junto à cobertura de chapa ondulada. A festa ficava lá fora. No interior, a atmosfera era introspetiva e o silêncio quase religioso. Sei que fiquei parada frente a esta fotografia. Tu, Europa querida, metamorfoseada nesta embarcação elegante, branca, indolentemente ancorada em Santiago de Cuba e quase ao alcance daquela família sentada no cais. Uma família racizada, como se diz, que te olha, sonha e espera.

Pergunto a mim própria por que raio pendurei esta fotografia neste sítio. É impossível não te ver, à entrada ou à saída. Dou contigo todos os dias de manhã quando desço do quarto para a cozinha. Ao entrar em casa, lá estás tu pendurada na parede à direita, por cima da tablete onde pouso as chaves de casa. É claro que há dias em que és engolida pela lisura do quotidiano e pela força do hábito. Quantas vezes passamos por coisas e pessoas sem as vermos? Quantas vezes somos cegos perante aquilo que se desenrola sob os nossos próprios olhos?

A realidade é bem mais triste do que a metáfora, Europa querida. Os que almejam alcançar-te não estão serenamente sentados no cais a mirar-te. Lançam-se às águas desesperadas dos mediterrâneos da vida, dispostos a pagar com o seu próprio corpo os escassos minutos de sonho que o destino e o lugar onde tiveram a infelicidade de nascer lhes reservaram. Para eles, tu és a terra da esperança. E também a cínica e mentirosa, capaz de externalizar fronteiras e subornar criminosos periféricos para que sejam eles a afundar barcos ou a reter migrantes em campos de morte.

A dois dias das eleições europeias, leio e releio artigos sobre as políticas antimigratórias e pseudo-humanistas defendidas pelo Partido Popular Europeu (PPE), ao qual pertencem os partidos das coligações que governam o Luxemburgo e Portugal. Leio sobre as medidas recentemente adoptadas pelo governo português nesta matéria. E leio sobre as violências racistas de que são alvo os migrantes residentes em Portugal.

Recordemos que reduzir a imigração foi a palavra de ordem da campanha pró-Brexit. O resultado está à vista: nunca o Reino Unido lançou tantas campanhas de captação de imigrantes de dentro e fora da UE para colmatar as lacunas nos setores da saúde, dos cuidados, da hotelaria, etc. Sabias que os hospitais ingleses estão cheios de enfermeiros portugueses? Porque será?

Espanta-me que um continente com baixíssimos níveis de natalidade queira travar a imigração. Espanta-me que um continente com falta de mão de obra em múltiplos setores crie barreiras à entrada de trabalhadores não qualificados. Pergunto a mim própria quem seriam, por exemplo, os marinheiros que enchiam as naus e caravelas portuguesas durante as Descobertas. Teriam todos obtido elevadas qualificações na escola de Sagres?? Seriam todos talentosos?? Ou não seriam antes uns desgraçados à procura de um milagre que os arrancasse a uma vida de fome e servidão? E já que não havia mulheres a bordo (ou poucas…), quem é que lavava o convés? Seria o Infante?

Revejo o vídeo daquele pobre homem que, com lágrimas nos olhos e a morte na alma, se decidiu a repatriar para a Indonésia a mulher e a filha nascida em Portugal. Tinha medo e queria protegê-las dos ataques racistas de que eram alvo. Porque é que a nossa experiência de emigração não nos tornou melhores, quando somos 2 milhões a viver fora de Portugal e quantas vezes a debatermo-nos com problemas semelhantes? E já agora, vamos a números: em 2022, os imigrantes pesavam 7,5 % na população portuguesa. No Luxemburgo, pesavam 47 % e, de acordo com o último censo, mais de 61 % dos residentes provêm da imigração. Nós, portugueses, representamos 14 % da população do Luxemburgo. Se o ódio racista fosse proporcional aos números, estávamos todos mortos.

O perigo de colapso da civilização e da economia europeias não está numa abertura generosa das fronteiras, mas no «Mir wölle bleiwe wat mir sin», como dizem os luxemburgueses. No «Queremos continuar a ser o que somos», em português. Na rigidez e no imobilismo. Na arrogância e no caciquismo. Os ultraconservadores são muito hábeis em iludir-nos sobre aquilo que cremos ser ou que julgamos alguma vez ter sido – a tal Europa pura, sem misturas, branquinha, pseudocristã e senhora do mundo. Uma ilusão que assenta na manipulação sem escrúpulos da história de um continente que conheceu importantíssimos fluxos migratórios, guerras, invasões, convulsões de toda a ordem, sem os quais, precisamente, não seria o que é. Um mosaico fascinante e complexo de culturas e religiões.

Fui buscar a fotografia e pu-la em cima da minha secretária enquanto escrevia esta crónica. Mas em breve voltará para o seu lugar. Para me lembrar de que os meus privilégios e o meu conforto poderão não durar sempre. A guerra na Europa, uma catástrofe climática ou um acidente em Cattenom e poderei ser eu quem fica a ver navios, à espera de alguém que me estenda a mão.

Eduarda Macedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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