De que está à procura ?

Colunistas

João Paulo Lorenzon: a conversa íntima do monólogo

Desde muito jovem o ator e diretor João Paulo Lorenzon travou contato com a obra do escritor argentino Jorge Luís Borges e isto foi determinante para que trouxesse seu universo a dois monólogos que encenou nos últimos anos: Memória do Mundo e Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a Sua Glória. Em ambos a memória e os nossos mundos imaginados vem à tona de modo intenso, propondo a discussão das perdas de que somos todos, de uma forma ou de outra, constituídos.

Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a Sua Glória é o seu quinto monólogo, depois de Água, Memória do Mundo, O Funâmbulo e De Verdade. Por que a predileção pelo monólogo? Acredita que ele amplia a capacidade de representação do ator?

Acredito que há nesse tipo de trabalho uma espécie de conversa. Uma conversa especial entre o ator e público. Uma conversa intima, quase um segredo. Quase uma confissão. Sinto que esta conversa só pode aparecer nesse tipo de trabalho e ela não é melhor nem pior do que outras conversas, mas ela é única, porque é de alguma maneira a solidão do ator falando com a solidão de cada um do público. E isso pode ser muito especial, perto do sagrado.

Alguma razão especial pela escolha de Borges em dois trabalhos seus?

Somos todos os homens. Borges me deu de presente esta frase: “Fui todos os homens, só não fui o que te segurava nos braços enquanto você desfalecia”. O que me encanta, quando sofro o impacto de sua obra, é a possibilidade de reinventar a realidade. Nessa mistura de mundos reais e ficcionais e poder se refundar. Quando criamos, em 2008, Memória do Mundo, meu olhar estava observando o infinito, o inatingível, o labirinto desconhecido. Queria adentrar a obra de Borges para convidar a todos a se perguntarem sobre suas próprias memórias, contidas, aprisionadas. Eu tinha um deslumbramento diante desses mundos fantásticos e desejava dialogar com Borges se era mesmo possível tocá-los nesta vida. Em Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a Sua Glória há um homem perdido em ruínas, em uma terra arrasada, devastada. Este homem agora se pergunta o que fazer depois de tudo revelado? O que fazer depois de ter visto o Aleph das coisas? O que fazer depois de se encontrar com o infinito e não poder esquecê-lo? O olhar deste trabalho, na imensidão da obra de Borges, está nas perdas. Como lidar com as perdas? Borges foi perdendo as cores do mundo e, ao mesmo tempo, foi ganhando novas cores. Foi, talvez, enxergando mais. E mais longe. E maior. O pai morto está a seu lado. E agora ele pode dimensioná-lo. Porque tem um olhar distanciado do que viveu. Assim como nós podemos de longe entender o quanto nos constituíram os amores que perdemos. Eu Vi o Sol deseja discutir a perda que nos constitui, a perda que nos refaz. Somos feitos delas. E nesse sentido podemos nos encorajar a enfrentar a vida, porque, sob esse ponto de vista, perder pode significar ganhar.

Como foi o processo de construção do personagem em Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a Sua Glória?

Quando entendi que muitas, para não dizer quase todas, citações e referências eram brincadeiras, então, pareceu que toda a seriedade do mundo havia se aliviado. Se ele pode brincar com algo tão sério, então todos nós podemos. Voltamos à idéia de que podemos ser muitos. Talvez todos. Por isso, não represento em cena Borges, ou pelo menos não como se pode imaginar. Me interessa mais dar voz a este homem “arruinado” que se pergunta sobre memória e esquecimento, que convida a uma viagem. Desejei  trazer à tona, ou pelo menos tentar trazer, os personagens de Borges, suas encarnações fantásticas: o tigre da infância, a Beatriz ficcional de O Aleph, Argos, o velho cão de Ulisses, da Odisséia, Demócrito de Abdera, que arrancou os olhos para pensar.  Mesmo que nessa escolha se perdesse algo. Assim me senti e tenho me sentido mais livre para honrar os mundos de Borges e, talvez, honrar a sua figura.

Qual a relação dos objetos de cena, como os 200 blocos de concreto, com o enredo do monólogo?

As ruínas. As ruínas de tempo, de memória, de esquecimento. As ruínas de vida e morte. Construção e destruição. O que se constrói de dia, desmorona à noite.

Por vezes, o ator se depara com uma relação de conflito entre o texto e sua realização no palco. Em algum momento tal conflito se deu com você?

Sempre há o abismo e sempre há o voo. E como diria Borges, “o sucesso e o fracasso são dois impostores”. Assim, no meio de tudo, avançamos e vamos nos descobrindo.

O teatro tem uma função maior? Acredita que seja possível reverter o senso comum de que ele seja mero entretenimento?

O teatro para mim é o sonho. O convite a uma viagem para dentro de si. Dentro da memória e da imaginação. Um convite a nos reinventarmos e nos encorajarmos a enfrentar a vida.

No espetáculo Água, você mergulhava num cilindro de acrílico, com três toneladas de água. Como surgiu a ideia de encenar uma peça com este grau de dificuldade? Qual era a reação da plateia?

Gosto de experimentar os limites, sinto que isto também seja um convite para que cada um possa se encorajar a enfrentar os seus.

Em Eu Vi o Sol Brilhar o presente dialoga intensamente com o passado. A memória é a linha central do monólogo?

Assim que vejo. Os mundos se misturam. Podem se misturar, se não estivermos cegos. Se estivermos abertos. Se pudermos nos multiplicar. E não temermos as perdas. São o mesmo mundo e são também opostos. São todos e nenhum. Me parece que o convite de Borges não é olhar para longe, mas para dentro. Quanto mais fantástico, mais próximo, mais vivido, mais pleno de possibilidades. O fantástico está na viagem,  muitas vezes adiada, de pararmos e lembrarmos o que somos e o que poderemos ser e desfrutarmos este instante presente, que guarda em si todas as nossas histórias, nossos sonhos e nossas perdas que nos trouxeram até aqui.

Na cena inicial de Eu Vi o Sol brilhar você está nu, de costas para o público, numa penumbra. Esta nudez e o orgasmo encenado ao longo do espetáculo envolvem uma questão ainda vista com forte carga de preconceito entre nós, a da sexualidade. Gostaria que comentasse como foi trazê-la para a peça.

Para honrar Borges é necessário traí-lo. Se me apego à sua figura, faço um trabalho limitado, se me apego ao seu universo, posso ser infinito. Assim, a nudez e o êxtase, que poderiam estar longe das primeiras imagens de Borges, são próximos, se pensarmos que este homem viu tudo e compartilhou com todos a beleza do universo.

Como recebeu a notícia das indicações ao Prêmio Shell de melhor ator e melhor iluminação para Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a Sua Glória?

Tem uma frase que diz: “as glórias que vem tarde já vem frias”. E essa glória veio até cedo demais. Traz um sentido de recompensa e intensifica o desejo de continuar, de ultrapassar.

Ao interpretar Borges, o gestual do personagem se aproxima do gestual do autor? Houve alguma pesquisa neste sentido?

Se somos íntimos? Se eu gostaria que fôssemos?
No programa da peça escrevi um texto sobre as origens:

……
Saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão. Há uma gratidão na obra de Borges. Foi minha avó que me apresentou a ele. Na verdade, foi a morte dela que me levou a conhecê-lo. Depois que ela se foi, revirei, menino, as suas coisas, na tentativa de encontrar um sinal, uma mensagem mágica. Encontrei um livro com uma ampulheta interseccionada com um labirinto na capa e, dentro, no final de um conto, logo após o ponto final, estava escrito com tinta azul: “Lindíssimo!” Era a letra de minha avó. Eu, que a achava lindíssima, quis então saber quem é que ela achava lindíssimo. E foi assim que tudo começou. Borges foi lentamente ficando cego e, em sua obra,   assim pude ver, este fato mais lhe trazia o desejo de desfrutar os instantes que restavam e as imagens que permaneciam, do que algum sentimento de  revolta ou vingança.  “É uma doçura, se parece com a eternidade, ele me disse uma vez”.
-Por que você me pintou com um olho só? Perguntou a duquesa ao pintor Modigliani. – Para que você veja o mundo com esse. E com o outro veja dentro de você.
Há uma gratidão na obra de Borges. Na possibilidade do infinito. Como sempre houve na infância com minha avó.
…….
Sempre dialoguei com Borges. Desde quando lí As Ruínas Circulares, meu primeiro contato com a obra dele, entendi que tudo poderia ser sonho. Sempre me libertei das opressões escutando Borges. E ainda que possa parecer demasiadamente ambicioso, posso dizer que já somos amigos.

O universo borgeano ainda pode render novos espetáculos? Algum personagem, em especial, que gostaria de viver?

Agradeço aqui a sua força de desejar levar o Sol para tantos lugares, isso não deixa de fazer parte de projetos futuros. Claro que tenho muitos sonhos e muitos deles gerados pela alegria que o Sol trouxe, mas tudo que estou apto a falar é que o futuro guarda muitas possibilidades, o futuro guarda todas as possibilidades. E nosso encontro já é sinal disso.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA