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Luiz Costa Lima: erudição e argúcia de um mestre

Luiz Costa Lima figura como um dos mais fecundos críticos literários brasileiros de todos os tempos. Sua vasta produção acadêmica, com traduções para o inglês e o alemão, bem como suas cinco décadas dedicadas ao magistério, dentro e fora do Brasil, pois lecionou em importantes universidades européias e americanas, dão-lhe lastro poucas vezes alcançado por intelectuais brasileiros.

É autor de mais de 20 títulos, dentre os quais destacam-se Estruturalismo e teoria da literatura; Mímeses e modernidade; O controle do imaginário; O fingidor e o censor e História. Ficção. Literatura.

Pode nos falar um pouco sobre sua família e a infância em São Luís?

Meu contato com São Luís resumiu-se a dois momentos: entre meu nascimento e nove meses de idade, quando meus pais passaram a viver no Recife. E nas férias de fim de ano, que passava, durante a adolescência, com a família de meus avós maternos. Em suma, de maranhense tenho o nascimento. Minha formação de fato é do Recife.

Em que momento foi travada a afinidade com a leitura?

A partir dos 16 anos, por influência da autobiografia de um já então frade trapista, o norte-americano Thomas Merton, A Montanha dos sete patamares. Até então, pensava que iria estudar matemática. Curiosamente, se A Montanha é a história de uma conversão religiosa, a conversão que em mim se operou nada teve de religiosa.

Que autores  exerceram papel relevante em sua formação?

O primeiro é o acima citado, Thomas Merton. Não considero senão os que terão um papel decisivo no que julgo minha fase de maturidade. Por ordem cronológica: E. Auerbach, Lévi-Strauss, Wolfgang Iser e Kant. Sobretudo Kant.

Como foi ingressar no curso de Direito, ainda muito jovem, bem como a amizade com Paulo Freire?

Como já disse, desde os nove meses de idade, passei a viver no Recife. Paulo era meu vizinho e foi meu mestre de vida em minha adolescência. O primeiro grande baque na vida se deu junto com ele: o golpe militar de 1964 nos expulsou da Universidade Federal de Pernambuco e nos fez seus presos, em certo momento, convivendo na mesma cela.

Sobre o período em que viveu em Madri, onde se tornou amigo de João Cabral de Melo Neto e aluno de Dámaso de Alonso, quais as melhores recordações?

Foi um período existencialmente importante, pois era a primeira vez que saía da casa de meus pais. João, além de grande amigo, foi meu mestre de poesia, dizendo-me quem devia ler de poesia espanhola, francesa e inglesa. Em troca, da universidade espanhola só guardei ter verificado que a estilística que nos ensinavam podia ser mandada para o lixo. (Em troca, se manteve como grande influência na universidade brasileira).

E a ida para o Rio, logo após o golpe de 64? Que papel teve Gilberto Freyre nesse sentido e como vê a obra do sociólogo pernambucano hoje?

Creio que Gilberto foi estragado pelo meio estreito do Recife. Embora com enormes discordâncias, vejo Casa Grande e Sobrados e Mocambos como grandes livros. Depois, Gilberto passou a se estilizar a si mesmo. Sua vaidade extrema e a idolatria interessada que o cercava fizeram seu talento virar fumaça. Suspeito que teve ele um papel decisivo em ser eu incluído no AI/1. Mas não tenho nada que o prove.

Gostaria que nos contasse sobre o encontro com Antonio Candido e o doutoramento em Teoria Literária, na Universidade de São Paulo.

Procuro ser sintético ao máximo. Fui forçado a fazer meu doutorado na USP,  porque não era aceito na Universidade Federal do Rio. Para chegar ao Candido, a quem não conhecia pessoalmente, fui decisivamente ajudado por sua filha, Ana Luísa, de quem eu havia sido professor. A defesa da tese foi duplamente complicada: por um lado, a tese era escrita sob um clima de sobressalto. De fato, poucas semanas antes da defesa, fui “recolhido”, com direito a capuz, sala de ar condicionado e luz acesa constantes, o que me impedia de saber quando era dia ou noite. Por sorte, fui solto pouco tempo antes da defesa. Por outro lado, eu cometia a ingenuidade de apresentar como tema de tese uma reflexão sobre a possibilidade de trazer o estruturalismo de Lévi-Strauss à critica literária. Ora, naquele momento, a USP, que tinha o mérito de ser o bastião contra a ditadura que sofríamos, considerava que o estruturalismo era um instrumento da direita, se não um aliado do golpe. A defesa, independentemente dos defeitos de minha tese, se deu em condições bastante difíceis. Em síntese, para a direita no poder, eu não era confiável. Para meus examinadores, em princípio, era alguém um tanto suspeito.  Nada disso, entretanto, me impede de ser extremamente grato a Antonio Candido, assim como não me impediu de guardar minha independência intelectual contra os interesses dominantes no momento.

Embora ligado à crítica estruturalista, à qual você sempre teceu críticas contundentes, Lévi-Strauss é um dos autores de sua admiração. A que atribui este fato?

Para começar, Lévi-Strauss é um grande antropólogo e um escritor excepcional. Em segundo lugar, nunca tive simpatia pela chamada critica estruturalista – nas palavras do próprio Lévi-Strauss, uma espécie de “science fiction”. Em terceiro, minha ligação com o pensamento estruturalista chegou ao fim com o término de minha tese, em 1972. Ou seja, ao final da tese, verifiquei que não era por ali que eu podia desenvolver uma base teórico-analítica suficiente para a crítica literária.

É possível, de forma sintética, elencar os principais reducionismos da crítica marxista, embora ela ainda ocupe espaço amplo em nossos meios acadêmicos?

O maior problema do marxismo no Brasil é nossa tradição anti-reflexiva. Alguém já disse que o marxismo brasileiro é uma variante do positivismo. Isso não impede que alguns de seus problemas básicos estejam no próprio pensamento marxista. De imediato, apontaria seu caráter teleológico – herança do hegelianismo; seu reducionismo de toda a problemática da sociedade ao fator econômico; em terceiro lugar, derivada do economicismo, a indistinção entre cultura, ideologia e superestrutura. (Acrescento: o terceiro elemento se dá tão bem com nossa tradição anti-reflexiva que o descaso com a cultura como mera resultante de condições econômicas está presente em todas as direções políticas nossas).

Perdemos, no final de fevereiro, Benedito Nunes,  um dos intelectuais mais brilhantes que o país produziu no século XX. E foi Benedito quem o filiou à linhagem kantiana de pensamento.  Que papel tem o filósofo prussiano em sua obra?

Não, embora fosse grande amigo de Bené, meu interesse por Kant independeu dele. Foi sim decorrente da descoberta do filão da estética do efeito, sucedida em meados da década 1970 – quando pude, pela primeira vez, depois do golpe, sair do pais. Não que a base fenomenológica da estética do efeito me levasse de imediato a Kant, senão que intuí que me faltava um conhecimento melhor das três Críticas. Constituímos, então, em minha casa, um grupo de estudo com outros colegas, como o professor de ciência política Cesar Guimarães, o meu ex-aluno e hoje famoso antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e outros mais, que foram saindo progressivamente. Eduardo, sua mulher, Débora,professora de filosofia, e eu nos mantivemos firmes, e depois eu mesmo, sozinho, fiz a travessia da Terceira Crítica. Assim, embora Kant tenha sido a influência mais recente, foi ele que se impregnou mais intensamente em mim. (Observe-se de passagem: por mais distinta que seja a direção de Lévi-Strauss, a importância de Kant sobre ele havia sido decisiva).

Concorda com a idéia do autor da orelha de Vida e mimesis, para quem o livro seria “uma autobiografia que o autor não se permitiu escrever”?

A primeira parte tinha obrigatoriamente o caráter de algo semelhante a uma autobiografia, pois, escrita como exigência para ser professor titular da UERJ, devia seguir o modelo do que chamam de “memorial”. Mas, na medida do possível, procurei escapar do caráter autobiográfico, gênero ante o qual tenho a constante desconfiança de ser um exercício de narcisismo.

Que balanço é possível fazer das quase cinco décadas dedicadas ao magistério. Tendo passado por algumas importantes instituições estrangeiras, considera que ainda estamos longe da excelência das melhores universidades européias e norte-americanas. Como vê a proliferação de cursos superiores privados de qualidade questionável?

Sei que tenho um pendor cético acentuado. Mas creio que não é por ceticismo que vejo de modo extremamente critico nosso clima universitário, pelo menos nas chamadas “humanidades”. Não duvido que seja questionável a qualidade dos cursos particulares que proliferam. Mas, de acordo com minha experiência, foi numa instituição privada, a PUC (RJ), que encontrei em um conjunto de departamentos a condição mais próxima de cursos efetivamente universitários.

Temos  autores que injustamente acabam esquecidos ou relegados a um segundo plano, dentre eles Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, sobre quem gostaria que apontasse a grande contribuição que deram à moderna literatura brasileira?

Suponho que sua pergunta se refere a autores que vieram depois dos nomeados. Indicaria então: Guimarães Rosa, João Cabral e Drummond. Logo a seguir, Haroldo de Campos e seu irmão, por sorte nossa, ainda vivo e produzindo como um garoto, Augusto de Campos.

Outro autor a quem tem dedicado vários estudos é Euclides da Cunha. Que equívocos, a seu ver, têm sido reiterados em torno do autor de Os sertões? Teve oportunidade de ler a recente biografia de Euclides, escrita por Frederic Amory?

Sim, li a biografia de Amory. Acho-a muito boa como o que é: uma biografia. Gostaria talvez que ele tivesse enfatizado a ausência de um meio intelectual que tanto prejudicou Euclides. Quanto aos equívocos, restrinjo-me a dois: (a) do próprio Euclides: ele diz ter tido com um dos autores que mais o influenciaram, um sociólogo hoje pouco conhecido, L. Gumplowicz, no seu livro A luta das raças, lido por Euclides em sua tradução francesa. Ora, a tese de Gumplowicz era de que não havia diferenças biológicas entre as raças humanas, pois as supostas superioridade e inferioridade derivavam da vitória ou derrota, no enfrentamento dos grupos. Se Euclides houvesse entendido corretamente a fonte que privilegiava, Os Sertões teriam de ter outro caráter completamente distinto; (b) os próprios intérpretes de Euclides, contra, diga-se de passagem, o que pretendia o próprio autor, sempre tomaram Os Sertões como obra literária. A questão só aparentemente é de designação. Ela só se resolveria mediante uma indagação a sério sobre o que de fato distingue um discurso científico de um discurso literário. Ora, em que departamento de ciências sociais ou de letras toca-se em semelhante questão? (A propósito é centralmente decicado o História. Ficção. Literatura (2006).

É razoável afirmar que o desaparecimento de suplementos literários de envergadura reflete a crise de talentos em nossa produção literária contemporânea?

Não, absolutamente, não. Os suplementos desaparecem porque não dariam dinheiro para os jornais. Os talentos – que, entre nós, sempre foram raros – escasseiam pelas dificuldades de formação adequada e de sobrevivência com uma atividade intelectual entre nós. A questão, acrescento, está longe de resumir-se à literatura. Entre nós, não há reflexão teórica em campo algum. E a própria pesquisa científica é terrivelmente limitada porque os laboratórios recebem de suas matrizes as pesquisas feitas, cabendo às agencias nacionais reproduzi-las. Quero em suma enfatizar: há uma questão sobre a validade da atividade intelectual entre nós. Nada mais semelhante ao marxismo reducionista do que o pensamento burguês normalizado: para ambos, há o fator econômico e o resto é blábláblá.

Pensa na reedição de sua obra, em boa parte esgotada?

A reedição da parte que considero ainda atualizada tem sido cogitada por dois alunos. Mas entendo que não é fácil interessar algum editor em obra de tão poucos leitores como aquela que tem por objeto teoria e critica literária.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo(USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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