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Os demónios estão à solta

As cerimónias evocativas que culminaram com um voto de pesar na Assembleia da República realizadas em memória do tenente-coronel Marcelino da Mata, considerado pela ditadura um herói da guerra colonial, geraram uma agitação que revelou, mais uma vez, os buracos negros que a guerra colonial deixou, mas também um retrato da sociedade portuguesa e do atual panorama político.

Os votos apresentados no Parlamento por dois partidos de direita e um de extrema-direita (PSD, CDS e Chega) não podem deixar de ser ideológicos, sendo que jamais os partidos de esquerda poderiam fazer algo semelhante, pela óbvia conotação que a história de vida do tenente-coronel tem com a ditadura. Pode alegar-se o que quer que seja sobre o percurso de Marcelino da Mata, sobre a sua vida e as suas dificuldades, sobre a sua bravura ou, através dele, a homenagem que se faz a todos os combatentes e pode até depurar-se o voto para o tornar mais neutro, como fez a Comissão de Defesa da Assembleia da República, fundindo aqueles três votos num único.

O problema é que a neutralidade neste caso é impossível. O nome só existe, porque o personagem tem uma história indissociavelmente ligada ao Estado Novo e à Guerra Colonial. A sua vida é totalmente inseparável das mais de duas mil missões de combate que lhe valeram inúmeros louvores e do mito que se criou à sua volta. Falar de Marcelino da Mata é evocar a guerra colonial, tal como Salazar é indissociável da ditadura e Mário Soares da consolidação da democracia.

Outra coisa diferente é respeitar a condição dos combatentes, vítimas de um tempo e de um regime que não lhes dava outra alternativa, que nunca tiveram o devido reconhecimento pelo que passaram durante e após a guerra. Mesmo o tão ansiado estatuto do antigo combatente só em 2020 foi aprovado, por impulso de um governo socialista, depois de ter andado a patinar durante décadas. A verdade é que a sociedade portuguesa nunca soube lidar com os fantasmas da guerra colonial e uma certa polarização na discussão que agora se verifica é disso certamente uma consequência.

Os votos que as direitas apresentaram não podiam ser senão equívocos na sua mensagem, sendo inevitável que ressaltasse algum saudosismo por detrás do elogio ao tenente-coronel. Porém, quem mais instrumentalizou o seu falecimento foi a extrema-direita, que o Chega e a sua retórica venenosa ajudou a sair do armário, adensando o ambiente tóxico que se vive com a legitimação e respaldoàs piores atitudes que têm vindo a ser indecorosamente normalizados na sociedade portuguesa, como o racismo, a xenofobia, a intolerância e a radicalização de posições, seja em que matérias for, com muita manipulação e desinformação à mistura.

Por aqui se vê como a direita portuguesa anda em plena agitação para defender o seu espaço vital, usando para isso a defesa da honra do mais condecorado militar da guerra colonial, figura mítica do Estado Novo e do Império. Os demónios estão à solta. A democracia que se cuide.

Há um paralelo interessante com esta situação que vem dos Estados Unidos da normalização pelo reconhecimento. Muito recentemente morreu também um dos maiores provocadores da ultra-direita, chamado Rush Limbaugh. Provocador por natureza, estava entre os prediletos de Donald Trump, ao ponto do ex-Presidente lhe ter entregue a medalha da Liberdade, a mais alta distinção existente nos Estados Unidos. E Limbaugh não se distinguiu pelo seu humanismo ou solidariedade, pela tolerância ou filantropia. Distinguiu- se por ser um racista inflamado e declarado inimigo do islamismo, pelos ataques aos valores democráticos e às instituições, pela sua misoginia e aversão ao feminismo, pelo negacionismo climático e dos efeitos da pandemia de covid-19.

E em Portugal também a banalização de atitudes extremistas tem, infelizmente, feito o seu caminho. À boleia das reações à morte de Marcelino da Mata surgiu uma petição de uma intolerância chocante a pedir a expulsão do cidadão português Mamadou Ba. A expressão “vai para a tua terra” volta assim à cena, depois de André Ventura já ter feito o mesmo em relação a Joacine Katar Moreira, numa repetição vergonhosa que desvirtua o humanismo português forjado ao longo de séculos de convivência com povos em todos os continentes.

Este episódio surgiu depois de Mamadou Ba ter considerado Marcelino da Mata um sanguinário que não merecia qualquer consideração, o que o líder do CDS levou a mal. Rodrigues dos Santos reagiu infantilmente pedindo a sua demissão imediata do grupo de trabalho contra o racismo a que pertence, por ter insultado o valeroso e mais medalhado combatente da guerra colonial. E, como não podia deixar de ser, também o Chega se indignou, anunciando que ia fazer queixa na Procuradoria por “ofensa grave à memória de pessoa falecida”.

E por aqui se vê como a direita portuguesa anda em plena agitação para defender o seu espaço vital, usando para isso a defesa da honra do mais condecorado militar da guerra colonial, figura mítica do Estado Novo e do Império.

Os demónios estão à solta. A democracia que se cuide.

Paulo Pisco

 

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