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Pó dos livros

Biblioteca Nacional do Luxemburgo, Sala dos Periódicos, 10h45, 22 de dezembro 2018.

Duas cabeças grisalhas inclinadas sobre os jornais do dia nem dão pelo esplendor desta sala em abóboda nas traseiras do que é hoje a Biblioteca Nacional do Luxemburgo, mas que começou por ser há quatro séculos um colégio jesuíta, num tempo em que portugueses e luxemburgueses tinham o mesmo soberano, Filipe III de Espanha.

Os portugueses do Luxemburgo não querem saber disso. Os luxemburgueses também não. Querem tão somente ler o seu jornalinho sossegados, longe dos barulhos dos cafés, da rua e do frio luxemburguês.

O silêncio é sepulcral. E terapêutico. Pelas quatro amplas janelas em arco avista-se o pátio interior do edifício, do que devia ter sido outrora o antigo claustro, e de onde chegam agora ruídos ensurdecedores de um martelo pneumático, apenas filtrado pela vidraça dupla. Mal este se cala, é um balde de pedras que cai do alto do andaime com grande estrondo nas lajes de pedra. Um trabalhador solta um “foda-se!” O outro responde-lhe lá para cima: “Caralho!” É incomensurável tudo o que este diálogo vernacular comporta, e que pode parecer parco à primeira vista, mas é tão somente direto no que tem de mais essencial. É o discurso direto português no seu máximo esplendor, um discurso que não tem cá tempo de se perder labirintos de linguagem garbosa, verbos vácuos, palavras ou complementos indiretos supérfluos. Um tema que carece de estudo.

Os velhos, absortos, não despregam os olhos das páginas dos jornais. Mas bufam. Leio um artigo num jornal sobre os portugueses no Luxemburgo. Rondam os 90 mil. A realidade aponta para mais de 120 mil. Mas enfim, o Statec sempre aquém da verdade, devia trabalhar mais de perto com as entidades oficiais de um país antes de atirar números cá para fora sobre os nacionais desse mesmo país. Até porque, no caso dos portugueses, esquece-se que muitos, antes de se registarem como residentes moram em casa de familiares, amigos ou num quarto alugado por cima de um café e são assim, durante muito tempo, difíceis de recensear. Sem contar os que se exilaram no outro lado da fronteira, “refugiados-imobiliários”, e sendo ainda portugueses do Luxemburgo, são agora cidadãos da República macrónico-jupiteriana. Ou seja, ao todo devem andar por este burgo 150 mil portugueses, uma em cada quatro pessoas fala português, com e sem sotaque tropical, africano, françuguês ou luxotuga, e a realidade da língua que se fala na rua aponta para isso mesmo.

Os portugueses vão assentando no país como o pó nestes livros. Poisam leve, levemente. Há poeiras que se gostam de confundir com os livros, adotam-lhe as formas, deslizam pelas capas, contracapas e sonham-se enciclopédias, dicionários, pertencerem à coleção inteira. Poucos conseguem realmente fazer parte do ADN dos velhos e pesados volumes, quanto mais serem promovidos a outra prateleira. E fazem como os livros, querem-se sossegadinhos, arrumados, bem comportados, ordenados em estantes devidamente etiquetadas, e reivindicam a sua posição imperiosa aos recém-chegados. Hum, esses, são segundas, terceiras edições, ridículas! Os antigos cerram fileiras, encostam-se ainda mais uns aos outros, muito peremptórios, repletos de verdades de outros séculos. Com o passar dos anos alguns grãos de pó desses livros esquecem-se quem eram, apenas preocupados em parecerem-se o mais possível com o querem ser, com o ser o mais fiéis possíveis ao título do livro em que pousaram; outros impregnam-se neles, atravessam as lombadas e mudam para sempre quase sem dar por isso, enriquecendo-se com o valor acrescentando de alguma parca sabedoria adquirida ao longo da viagem pela celulose que envelhece; outros sonham ser essa celulose e o papel e a cartolina; e há finalmente os que pensam que vão abrir novos capítulos, tornar-se História. Pó vão!

Mas toda esta é uma (r)evolução lenta que demorará várias gerações. Porque há neste pó lusitano – que já se espalhou pelo mundo e que continua chegando há mais de quatro décadas a estas margens da outra Colunas de Hércules – muitos grãos de pó demasiado dóceis e tranquilos, pouco insurretos, alguns ambiciosos, outros menos, mas em quase todos a vontade de evitar levantar poeira. E nem falar em correntes de ar. Um sopro de brisa demasiado forte podia desfazer os velhos livros corroídos, as vetustas prateleiras de madeira carunchosa, e todo o edifício vinha abaixo e lá se ia a glória desta grandiosa biblioteca. Mas há neste pó luso mais metafísica do que na teoria de Lavoisier.

E assim, com o vagar de quem sabe que os horizontes são sempre verticais, o pó trabalha para ser biblioteca. Nem que para isso tenha que regressar à terra, ser raiz e seiva e árvore e pasta de papel novamente, ser marcada com outros carateres de imprensa e línguas novas, para se transformar finalmente em novas bibliotecas e futuros mais promissores em terras que lhes pertencem há muito sem, no entanto, eles saberem, terras fertilizadas pelo seu sangue, suor e lágrimas, mas também por todo o valor acrescentado da sua coragem, entrega, abnegação, força de trabalho, espírito de iniciativa, imaginação, desenrascanço, inteligência, impulso, inovação, tradição, intemporalidade, história, saudade, amor, descendência, e tudo o mais que para aqui trouxeram consigo, aqui criaram, aqui cresceu, se desenvolveu ou prosperou, e que é esta a sua verdadeira herança. .

JLC22122018 (Diário de A.)

 

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