
atenção – ordem do encenador,
o pensamento – atenção, o ensaio vai começar
o dramaturgo, o coração, sentado na segunda fila da plateia,
assiste ao ensaio
o encenador pede ao corpo para empalidecer, para deixar de respirar,
para relaxar os músculos
agora vais endurecer os músculos,
vais colocar o teu cadáver o mais
chegado possível do rigor mortis
– (onde está o violinista encarregue
de tocar uma marcha fúnebre?)
fruto de um ignoto erro cósmico,
acabaste de morrer
agora o teu espírito vai dizer-te:
ergue-te e anda – e tu vais erguer-te e andar
– ressuscitaste!
mais vivo que nunca, vais agora
encetar a mais longa caminhada da tua vida
e restam-te poucas horas para preparares a tua viagem
– inédita e irrepetível viagem
dá um passo, outro passo mais,
dá uma dezena de passos
acabas de começar uma longa travessia
– a travessia do teu passado
uma voz diz-te que não poderás
voltar ao presente enquanto não encontrares
o diário em que gravaste os teus dias e sonhaste o teu futuro
longo, denso e imperioso silêncio
– de repente, ao longe, sinos badalando
passaram mais de dez anos,
não encontraste o teu diário, apenas alguns poemas
e fogos-fátuos da tua infância
podes voltar ao presente
crês que tudo foi sonho, mas não foi
durante um mês, este assombro
vai arruinar-te o sono
(mais tarde irás saber que não um assombro, antes uma fogueira)
um assombro que aos poucos irá ficar incandescente
e irá iluminar-te todos os caminhos que
diante de ti irão abrir-se
a partir de hoje, não vais ler mais nenhum livro,
não vais escrever mais – e sobretudo, queimarás tudo o que escreveste
um conselho precioso: ouve a primavera
há quantos meses não cortas o teu cabelo e a tua barba?
porque deixaste de falar com a tua namorada?
os figos do teu quintal estão exuberantes e maduros,
pega num cesto e vai colher alguns
esse vinho que esqueceste tanto tempo no presente,
agora é puro vinagre;
bebe um pequeno gole,
sorri como se tivesses sentido
o sabor do bom vinho que já foi
os teus gerânios estão secos, rega-os;
molha as tuas mãos e o teu rosto,
beija os teus pulsos
agora liga aos teus pais,
diz-lhes que acabaste de assistir a um milagre,
diz-lhes apenas isso: um milagre
acende os teus olhos de girassóis,
abre todas as janelas do teu pequeno
apartamento, desliga o rádio,
pára os relógios, convida pássaros
e insectos nocturnos,
convida a lua e a ursa-maior
deus vai chegar atrasado
– não se trata de uma celebração,
mais tarde entenderás;
lembra-te de que apenas conheces uma
ínfima parte das leis que regem o universo
és humano,
és apenas um animal imperfeitamente lúcido,
lembra-te sempre disso
entretanto começa a preparar-te
– dentro de poucas horas é a estreia,
e, fruto de um sabido acerto cósmico,
todos sabemos que vais morrer
dm