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Visita de camarim

Abriu a porta num gesto decidido e ouviu um som seco. Receou ter esborrachado algum nariz, mas o que faria um nariz àquela hora, atrás da sua porta, duas horas e meia antes do início do espetáculo? Era uma figura volumosa e sombria que, apesar do esforço que fazia para se encolher, ultrapassava o perfil da porta e quase batia no teto do minúsculo camarim.

– O que fazes aqui tão cedo, João Bernardo? – articulou assarapantada a atriz, com o espanto a vencer-lhe o susto.

João Bernardo era conhecido por chegar sempre atrasado, sobretudo às matinés. A companhia tinha sempre o credo na boca. Será que vem? Será que há espetáculo? O contrarregra, inquieto, espreitava pela sua minúscula janela a sala cheia de um público ruidoso e expectante. E de João Bernardo, nem a sombra. De nada serviam as inúmeras admoestações do diretor de cena, orais ou inscritas na tabela para que toda a companhia ficasse ciente de que ali não havia dois pesos e duas medidas. Ali todos, mas todos, cabeças de cartaz, segundas figuras ou bailarinos, tinham os mesmos deveres – por exemplo, o de serem pontuais. Por vezes era só à primeira das pancadas de Molière que entrava de rompante pela porta dos artistas, a gritar um saiam-me da frente! esbaforido. Era certo e sabido que ao sábado à noite apanhava pifos monumentais, corria a cidade de bar em bar, mergulhava – vestido – na fonte do Rossio e acabava a noite a oferecer flores aos polícias da esquadra junto ao Teatro Nacional.

Havia assim, por Lisboa, algumas mulheres a quem os maridos, agentes da ordem, levavam flores ao domingo de manhã. Flores para a minha florzinha, diziam com um meio sorriso e os olhos a piscar de sonoEncantadas com tal gesto, elas preparavam-lhes opíparos pequenos-almoços para os compensar do árduo trabalho da noite e agradecer-lhes a lembrança. Eles abstinham-se naturalmente de lhes revelar a origem do presente. Uma ou outra, ali da zona, dizia para o marido a rir pois… tiveste visitas durante a noite! As manhãs de domingo eram curtas para João Bernardo curar a bebedeira, algo que os próprios polícias lhe recordavam ao raiar da aurora Ó Senhor Bernardo, não era melhor ir para casa? Como é que vai estar às duas da tarde no Parque Mayer? Não se preocupem que eu vou de táxi…respondia ele, encharcado até aos ossos, sapatos na mão, gravata atada em torno da cabeça, a lambuzar-se com bolas de Berlim com creme.

– Sai daí, João Bernardo, e senta-te – ordenou a atriz apontando para uma senhorinha de quarto inglesa de estofos já roçados – o que é que se passa agora?

João Bernardo obedeceu e a senhorinha abateu com o peso do homem e do desespero que carregava na alma. Tapou o rosto com as mãos e rompeu em soluços.

– Ajuda-me, Ciclone, ajuda-me!! – dizia chorando copiosamente.

João Bernardo sempre a tratara assim, um trocadilho entre nome e apelido de que só ele se lembraria. A atriz deixou-o chorar.

– João Bernardo! – interpelou-o a atriz, já em tom mais severo – o que se passa é que ainda estás com a bezana de ontem! – aproximou-se da porta, pôs a cabeça de fora – Clotilde? – chamou – e para com os seus botões – Será que já entrou? Clotilde!! – chamou novamente elevando a voz.

Uma mulher baixinha, magra, pálpebras encarquilhadas, bata escura e cabelo apanhado num carrapito saiu pressurosa de um camarim no princípio do corredor.

– Minha senhora?? – inquiriu.
– Clotilde, por favor vá ao bar e traga-me dois cafés fortes. No mesmo copo. E muito açúcar. E traga um carioca para mim. E uma garrafa de Água das Pedras.

Clotilde, com a impassibilidade de quem tudo adivinha, fez um leve aceno de cabeça, voltou costas e abalou escadas abaixo em direção ao bar.

Ciclone acendeu ambos os frisos de luzes do espelho de maquilhagem que varreram o camarim como holofotes. Sentou-se e rodou a cadeira para ficar de frente para João Bernardo que, sentindo aqueles olhos verdes de serpente cravados nele, destapou a cara. Estava lívido, com olheiras cavadas e roxas, o farto bigode empapado em lágrimas, saliva e fluidos nasais. Tresandava a whisky e o mais certo era que ainda não se tivesse lavado nem mudado de camisa.

– Ajuda-me, Ciclone… – murmurou João Bernardo, baixando os olhos.
– Mas ajudo-te como, João Bernardo?? Já te pedi dois cafés, vão-te fazer bem…e por favor sossega!

João Bernardo olhou-a e largou a chorar novamente.

– Não quero casar com a Salomé… – disse soluçando.
– Não queres casar com a Salomé??? – disse Ciclone arregalando os olhos incrédulos, enquanto lhe passava a caixa dos lenços de papel para as mãos. João Bernardo assoou-se estrepitosamente.

Salomé e João Bernardo iam dar o nó dia seguinte. Ciclone e o marido contavam-se entre os convidados daquele casamento com pompa e circunstância, embora não fizessem a mais pálida ideia de que Salomé se trataria. Seria decerto uma rapariga de boas famílias, com posses e pergaminhos, porque João Bernardo, se era doido varrido, não era homem para casar com uma qualquer corista. Também a sua família tinha pergaminhos.

A notícia do casamento tinha abalado o Parque Mayer e todos os planetas na sua órbita. Todos se convenceram de que se tratava de mais uma das múltiplas encenações que o ator fazia de si próprio. Casar, o João Bernardo? Impossível. Os poucos que sabiam que o assunto era sério achavam-no um perfeito disparate. Não dura nem uma semana, esse casamento, vaticinavam.

– Não, não quero casar com a Salomé… Ajuda-me, Ciclone! 
– Mas o queres tu que eu faça?? – perguntou Ciclone, em tom de sincera impotência.

João Bernardo franziu o cenho como se refletisse. Tirou do bolso um maço de tabaco amassado, o seu Ronson negro e acendeu um cigarro. Aspirou o fumo, soltou uma longa baforada, fixou os olhos verdes de Ciclone com o seu olhar de avelã e soltou uma frase determinada.

– Tenho um Porsche à porta e uma pipa de massa no bolso… Vou fugir!
– Mas estás parvo??!! Vais fugir?? – respondeu Ciclone atarantada – E para aonde?
– Pois é esse o problema… – gaguejou João Bernardo atormentado – não sei… Não tens nenhuma quinta onde eu me possa esconder e ninguém me encontre? – perguntou com o ar de um garoto a pedir um Rajá à mãe.

Ciclone rebentou a rir aquelas gargalhadas que abalavam as fundações de qualquer sítio em que se encontrasse e faziam com que quem estivesse nas imediações voltasse a cabeça para ver de onde vinham tais rinchadas.

– Ris-te da minha desgraça, Ciclone?? – lançou João Bernardo zangado.
– Sim, João Bernardo … – retorquiu Ciclone, quando, dez minutos depois, ainda agarrada ao estômago, conseguiu finalmente estancar as lágrimas de riso que lhe escorriam pela cara abaixo – tenho três quintas, cinco mansões, um jato privado, dois Mercedes, dez piscinas e um mordomo de libré que estará à tua espera onde tu quiseres aparecer com uma lagosta suada e uma garrafa de champanhe francês no frappé… Ó João Bernardo!! Então tu não sabes onde eu moro, meu estupor? E não foste comigo pôr umas joias no prego para eu pagar o dentista da miúda?

João Bernardo suspirou. Sabia. Despejou quatro pacotes de açúcar no café que, entretanto, a discretíssima Clotilde depositara nas mãos de Ciclone por uma nesga da porta. Agitou o líquido energicamente, chocalhando a colherzinha com as paredes do copo de vidro e bebeu-o de um trago.

– Ainda estou com os copos… e desgraçado da vida… – disse – Tenho de fugir, Ciclone, tenho de fugir, não quero casar com a Salomé…
– E se falasses com ela? – perguntou Ciclone.
– És louca!!! – ripostou João Bernardo alarmado, fulminando-a com o olhar – E eu era capaz de fazer tal coisa?? E o escândalo que era? Sou um cobarde miserável, sabes disso, Ciclone!
– Bem… – respondeu Ciclone, seráfica – quem é capaz de esconder cinco namoradas nos camarins deste teatro sem que nenhuma delas dê pelas outras, como fizeste na semana passada, também deve ser capaz de muito mais… Alma até Almeida, João Bernardo!
– Mas isso foi muito mais fácil – retorquiu João Bernardo, traquinas – contei com a solidariedade do corpo de baile, umas moças com bom coração… – e calou-se.

Entretanto, fora daquele cubículo, o teatro agitava-se. Nos corredores, alastrava a excitação e o burburinho. Ouviam-se nós de dedos a bater com violência a portas que se abriam e fechavam com estrondo, correrias atarantadas, vozearia de homens e imprecações de mulheres escadas abaixo, escadas acima, pragas e obscenidades a cortar o ar. A casa estava à cunha, matiné e sessão da noite esgotadas. Havia filas de pessoas ansiosas à espera de desistências de última hora.

– Bem, João Bernardo – disse Ciclone calmamente – estamos a uma hora de começar… se fugires, não há espetáculo.

João Bernardo saltou da cadeira como se lhe tivessem crescido molas nos pés. Bateu com a mão na testa e olhou-a esgazeado, fulminado por um raio.

– Pois é!! Não tinha pensado nisso! – exclamou alto e bom som. E depois mais baixo – … se eu fugir, não há espetáculo… – voltou a sentar-se e pôs-se a olhar para o teto pensativo.
– … ficam cinquenta pessoas penduradas… – acrescentou Ciclone – e o César vai ter de devolver o dinheiro dos bilhetes…

Calaram-se ambos.

– O espetáculo tem de continuar, não é? – perguntou João Bernardo, vacilante.
– O espetáculo tem de continuar – repetiu Ciclone com firmeza.

Calaram-se novamente.

– Vou-me arranjar então, Ciclone – disse João Bernardo, levantado-se enquanto acendia outro cigarro – Logo verei o que faço amanhã com a Salomé.

E saiu.

Eduarda Macedo

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